GUERRA

Guerra? Que guerra? Em Moscou, tudo parece normal e vida que segue

Nas ruas da capital, são comuns as festas e o desfile de carros de luxo como Lamborghinis e Porsches

Da redação | 3 de outubro de 2022 - 15:30

Do New York Times 

Poucas coisas parecem ter mudado no dia a dia de Moscou, desde o início da guerra na Ucrânia. Na capital, ao contrário do restante do país, a população tem recursos financeiros para absorver aumentos significativos, nos alimentos e serviços, provocados pelo conflito.

O GUM, shopping center de luxo perto da Praça Vermelha, continua lotado. Embora muitas lojas ocidentais como Prada, Gucci e Christian Dior tenham fechado. Os restaurantes e teatros seguem faturando. Nas ruas da capital são comuns os carros de luxo como Lamborghinis e Porsches.

“Algumas lojas fecharam por causa das sanções, o que é meio frustrante. Mas não tão ruim assim”, comentou Yuliya, de 18 anos, recém-formada no ensino médio. Ela estava com os amigos no Parque Gorky, onde os moscovitas gostam de tomar sol, dançar e andar de patins. Tanto ela como o resto de seu grupo admitiram não pensar muito no conflito na Ucrânia.

Estratégias de Putin

Exatamente com esse distanciamento que Vladimir Putin está contando ao pôr em prática a estratégia doméstica de blindar a população das cruezas da guerra. Nada de notícias sobre alistamento, nem enterros em massa, nenhuma sensação de perda ou tensão por conta do conflito. Boa parte de seus planos nos campos de batalha estão tendo um resultado bem diferente daquele que planejara. Mas, em território nacional, o presidente tem conseguido dar à rotina o maior clima de naturalidade possível.

A maioria dos museus e teatros continua aberta, contanto que a administração não critique o Kremlin. Nas noites de verão é comum ver barcos lotados de festeiros singrando o Rio Moskva, ou grupos fazendo piquenique no gramado das margens. A temporada de outono da ópera e do balé estão no começo. Embora algumas produções tenham antecipado a estreia e outras, em cartaz, tenham sido canceladas. O motivo do cancelamento é a adesão dos diretores e astros na condenação da invasão, ou porque fugiram do país.

“O que o russo, normalmente, faz é proteger a rotina, o dia a dia. É um mecanismo de defesa que vem do período soviético, mas se tornou mais comum ao longo da era Putin. Essa sempre foi uma prioridade para a liderança do país, que, aliás, é muito boa nisso, e está conseguindo um sucesso considerável nessa empreitada”, explicou Greg Yudin, professor de filosofia política da Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas de Moscou.

Festas e desfiles

Em noite recente, na Praça Vermelha, um grupo de paraquedistas de elite e uniforme camuflado apresentou um número de dança que mais parecia luta, com direito a pirotecnia. Um egípcio vestido de faraó desfilou em uma biga que exibia o ankh, símbolo antigo da civilização que representa a vida, enquanto uma banda tocava a canção de guerra soviética “Katyusha”.

Uma banda militar da venezuela é aplaudida após se apresentar em um festival na praça vermelha em Moscou. (Foto: Nanna Heitmann/The New York Times)

Nataliya Nikonova, de 44 anos, estava entre os milhares de espectadores que das arquibancadas aplaudiam o festival em homenagem às Forças Armadas russas e às nações amigas, incluindo Belarus, a Índia e a Venezuela: “Fiquei tão empolgada que acabei completamente sem voz!”.

É o mesmo Exército que trava hoje uma guerra de ritmo lento que já deixou milhares de mortos e que contribui para a inflação global e o aumento nos preços da energia, mas Nikonova garante não ter sentido muita diferença na rotina nos últimos seis meses. “Não mudou muita coisa. Claro, os preços subiram, mas dá para levar”, completou antes de sair correndo para ouvir o bis de “Katyusha” da Banda Sinfônica Militar Egípcia.

Protesto silencioso 

Mas, se por um lado muitos moscovitas preferem investir nas festas e na ignorância deliberada, os intelectuais da capital, ligados ao Ocidente ou à Ucrânia pelo trabalho e/ou pela vida pessoal, lutam para reconciliar o clima de normalidade com a seriedade do engajamento no maior conflito terrestre em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

Isso ficou bem evidente nas manifestações de apreço e gratidão dos milhares que compareceram ao funeral do líder soviético Mikhail Gorbachov, em três de Setembro, em um protesto silencioso contra Putin e suas políticas. “Assim que os tanques russos entraram na Ucrânia, comecei a ler livros sobre a ascensão do totalitarismo na Alemanha nazista e a me familiarizar com o conceito de culpa coletiva. Foi o fim do mundo para muita gente. Em seu nome há alguém matando civis; seu país está se tornando algo semelhante à Coreia do Norte. Participei de um protesto e de um abaixo-assinado; dias depois, fui ‘convidada’ a pedir demissão do cargo que ocupava em uma instituição pública”, desabafou Anya, de 34 anos, que, como muitos entrevistados para este artigo, preferiu não dar o sobrenome por medo de retaliação.

 

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