Aos 17 anos, Pelé encabeçou o exército de brasileiros que finalmente derrotou nosso complexo de vira-latas e ajudou a aglutinar o país
Para muita gente, o barulho da mídia com notícias e homenagens sobre Pelé pode soar excessivo. Mas para compreender tamanha comoção mundial talvez seja preciso embrenhar-se pela história brasileira dos últimos 100, 150 anos.
Não por acaso a morte do homem que encarnou o brasileiro mais conhecido do planeta, nosso maior ícone pop, merece tanta reverência.
A bem da verdade, o ditador Getúlio Vargas anteviu no futebol já nos anos 30 o catalizador cultural capaz de aglutinar as emoções de norte a sul do país continental. Desde a segunda década do século XX, o futebol carregava aos estádios milhares de pessoas nas principais cidades e os selecionados nacionais já haviam obtido sucesso em campeonatos sul-americanos.
Mas nas duas primeiras Copas, de 30 e 34, era nítida a divisão principalmente entre paulistas e cariocas. Em 1930, por exemplo, como a seleção era formada quase que apenas por cariocas, ao chegar por telegrama a notícia da derrota para a Iugoslávia, na estréia, no Uruguai, houve comemoração no centro de São Paulo. Em 34, na Itália, não foi muito diferente.
A partir de então, Leônidas passou a ser uma espécie de garoto propaganda do governo na tentativa de unificação do país em torno de uma causa comum. Foi montado um bem sucedido mix de futebol e rádio que, a partir de então, passou a chegar à maior parte do Brasil, pelas ondas da Nacional do Rio de Janeiro.
Apesar do êxito inicial, veio a 2ª Guerra e depois a grande derrota brasileira em 1950. O que era para ser a apoteose da estratégia de reunir a nação em torno da paixão pelo futebol transformou-se em frustração pela derrota para o Uruguai por 2 a 1 na final, em pleno Maracanã.
Nelson Rodrigues, o emblemático cronista e dramaturgo, cunhou então a expressão “Complexo de Vira-Latas”, para explicar a derrota inesperada que seria consequência de uma suposta falta de confiança inata do brasileiro em si mesmo.
O mesmo Nelson Rodrigues o chamou pela primeira vez de “rei” em uma crônica ainda antes da Copa de 58. Em fevereiro, o Santos vencera o América carioca pelo Rio-São Paulo no Maracanã por 5 a 2 e Pelé fez quatro gols
Na Suécia, quatro meses depois, Pelé não jogou as duas primeiras partidas por estar machucado e Garrincha era reserva. Após um decepcionante empate com a Inglaterra, em 0 a 0, e a pedido de jogadores mais experientes, que viam neles a grande expressão de ataque do Brasil, ambos entraram no terceiro jogo. E o Brasil venceu por 2 a 0, com gols de Vavá.
Pelé, ali, ao lado de companheiros muito mais velhos, tornou-se um líder, menos pelo que falava e mais pelo que fazia endiabrado, em jogadas, dribles e gols. Jogou as quatro últimas partidas e fez 6 gols. Ao lado de Didi e Garrincha, foi o grande nome da maior vitória nacional de todos os tempos.
Estava quebrado o “Complexo de Vira-Latas” e o país comemorou de norte a sul a conquista, que foi a marca inicial e indelével do árduo trabalho daquele ex-engraxate de 17 anos para mostrar ao mundo o Brasil vencedor.
Nos anos seguintes, encabeçou o Santos Futebol Clube em títulos na América do Sul e no mundo, tornando o clube uma atração internacional “globe trotter”, como nenhum outro. A ponto de ter uma guerra no Zaire suspensa para a sua apresentação, em 1969.
Num Brasil injusto, de elite branca e oportunidades escassas aos pobres, principalmente aos negros como ele, Pelé ganhou mais duas copas. E, ao chegar aos 1000 gols, contra o Vasco, no Maracanã, beijou a bola e dedicou aquela façanha às crianças brasileiras, pedindo que elas fossem mais bem cuidadas pelo governo.
O trabalho operário de vencer pelo Brasil persistiu. Ganhou mais alguns títulos pelo Santos e, após se despedir do clube que o consagrou rei, aceitou convite milionário para divulgar o futebol nos Estados Unidos, jogando pelo Cosmos de Nova York por dois anos.
A seu modo, com a mesma naturalidade com que caiu em prantos nos braços do goleiro Gilmar, ao conquistar a Copa de 58, Pelé foi de infinita importância antropológica para o país. Mostrou como nenhum outro o melhor do Brasil para o mundo, mas sem esconder nossas mazelas.
Tornou-se o brasileiro mais conhecido do planeta em todos os tempos, nosso grande ícone pop, à altura de Beatles, Elvis Presley e Mandela para outras nações. Sorriu sempre, mesmo quando seu corpo, atlético por décadas, já não respondia mais a mínimos movimentos. Exausto, após trabalhar de forma incansável em favor do país que amava e ajudou a aglutinar, partiu sem dor e em paz, como merece um deus.
Obrigado, Pelé!