Caso provoca debate sobre questões como: qual é o limite para sedução, paquera e consentimento?
The New York Times
Um escândalo que abala o país do amor e do romantismo envolve uma das figuras mais conhecidas da televisão francesa: Patrick Poivre d’Arvor que, ao longo de décadas, atraiu milhões de telespectadores para seu programa noturno no TF1, maior canal francês. Vinte mulheres se apresentaram para acusar abertamente o apresentador de assédio, abuso sexual e estupro.
Para seu imenso público, d’Arvor parecia um homem exemplar, culto, sedutor, grande marido, excelente pai. A sua credibilidade estava tão alta que, em Abril deste ano, ele entrou na justiça contra várias mulheres que o acusaram de assédio e abuso sexual, alegando que eram “mal-amadas” e “amargas”. Revoltadas, elas se reuniram em maio em um estúdio de TV com o pessoal do Mediapart (foto da capa), principal site investigativo do país, para relatar todas as supostas violações e/ou investidas feitas por ele.
Aos 74 anos, o apresentador, que já foi chamado de “Don Juan” pela Paris Match, nega todas as acusações, alegando que é apenas um “sedutor” à moda antiga. O movimento Me Too não concorda com esse tipo de desculpa. Um das possíveis vítimas vai mais além. “O que isso quer dizer?”, pergunta Hélène Devynck, jornalista de 55 anos que acusou d’Arvor de estuprá-la na casa dele, quando atuava como sua assistente.
Apesar de quase todas as acusações contra o âncora serem muito antigas e já prescreverem, o caso pode voltar a ser analisado pela justiça porque ele entrou com uma ação. Essa atitude acabou dando as acusadoras a chance de confrontá-lo em público nos próximo meses. “Seu ego o está destruindo”, resume Cécile Delarue, jornalista de 43 anos que acusa d’Arvor de assediá-la sexualmente quando trabalhavam juntos, há 20 anos.
“São mulheres movidas à base de vingança porque não se sentiram confortáveis para chamar a atenção do homem que antes admiravam tanto”, afirma ele, em nota enviada à imprensa e cujo conteúdo foi confirmado por seu advogado Philippe Naepels. O confronto direto entre o apresentador e suas acusadoras contribuiu para a ampliação do debate nacional sobre sedução, paquera e consentimento que atualmente ocorre na imprensa e nas redes sociais, onde a descrição de um homem como “grande sedutor” agora gera desprezo, questionamentos e ceticismo, mas não admiração.
D’Arvor está casado há 50 anos com a mesma mulher que, aliás, não comentou as acusações publicamente. E como a lista de denunciantes não para de crescer, o âncora, que deixou de apresentar o noticiário noturno em 2008, se tornou, segundo uma capa recente da “Paris Match” um homem à margem da sociedade, excluído do convívio social.
“Nunca contei para ninguém sobre o estupro, só pedi para ser transferida. Sabia que se reclamasse na época, ele seria o sedutor e eu, a vagabunda. Não podia falar nada por causa do poder que tinha e o apoio com que contava”, revela Devynck, que construiu uma carreira de sucesso em outras emissoras.
Dez anos depois, em 2002, quando Delarue chegou ao TF1, descobriu que pouco havia mudado. “Ser sexualmente assediada por Poivre d’Arvor era o rito de passagem que as recém-contratadas tinham de tolerar. Sou de uma geração que cresceu com a ideia de que homens e mulheres são iguais. Minha mãe sempre dizia que eu conquistaria minha liberdade através do trabalho, mas ali estava um homem que me via só como um pedaço de carne”, revela.
A jornalista ficou um ano e meio na emissora, saindo para trabalhar em outros canais e depois se mudou para Los Angeles, onde morou bastante tempo. Ainda estava lá quando o movimento #MeToo surgiu, em 2017, encerrando a carreira de famosos como Charlie Rose e Matt Lauer em questão de meses. “Lembro de ter pensado que era exatamente a mesma coisa, lá e cá. Fiquei só esperando alguém denunciá-lo, mas levou quase quatro anos para isso acontecer.”
Para esquentar o debate, uma carta escrita e assinada por Catherine Deneuve e outras francesas famosas, denunciando o movimento como “puritanismo” e defendendo a “liberdade de importunar” como parte da “paquera” francesa, ficou famosa. “O feminismo francês tradicional e sua rejeição cabal do #MeToo como uma aberração norte-americana são uma ‘armadilha’ denunciava o texto.
De qualquer forma, a identidade masculina francesa começou a ser questionada em livros e no debate público. O site Mediapart abriu um espaço para investigação de violência sexual e nomeou um editor de gênero, expondo uma série de escândalos de assédio, denunciando mesmo as circunstâncias em que não houve inquérito oficial, algo que a maioria dos veículos de comunicação franceses reluta em fazer.
Marine Turchi, principal repórter da cobertura dos casos de violência sexual, não deixa passar nada – incluindo o mito do grande sedutor que, segundo suas investigações, quase sempre é lembrado para justificar a violência sexual. “Durante muitos anos, o estilo francês de sedução, de paquera e de galanteio, serviu de álibi e de máscara para outras intenções”, comenta ela.
Foi o jornal “Le Parisien” que deu o furo, em fevereiro de 2021, depois que a escritora Florence Porcel ter acusado d’Arvor de assédio sexual e as autoridades abrirem inquérito. E uma das primeiras mulheres a lhe oferecer apoio foi Clémence de Blasi, escritora de 33 anos que, depois de ler a reação do público em geral, se sentiu motivada a expor sua experiência com d’Arvor no Twitter. “A imagem dele era tão poderosa que as pessoas diziam: ‘Não é possível, ele é tão sedutor! Ela deveria se sentir lisonjeada!’ Continuei lendo e só falavam em charme, galanteio, sedução quando, na verdade, não tinha nada disso”, diz ela.